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quarta-feira, 14 de março de 2012

O JOGO HOMBRE





Esta gravura inglesa de 1734 mostra uma partida de hombre disputada entre nobres.


Também conhecido em vários países por seu nome espanhol - El Hombre - e ainda por ombre (em especial, na Europa não-hispânica), o hombre constitui um extraordinário testemunho histórico das origens dos jogos de cartas.
De fato, ele continua sendo praticado em sua forma mais conhecida, a de três jogadores, e mantém razoável popularidade em diversas regiões européias. Isso ocorre até, por exemplo, na área ocidental da Dinamarca.
O hombre foi muito difundido na Espanha por longo tempo, principalmente através de uma variante, o tresillo (ou voltarete, nome adotado em Portugual). Algumas de suas características também sobreviveram no solo, jogo comum em vários países da América Latina (entre os quais o Brasil, onde ele chegou com os colonizadores e se manteve popular até meados da década de 1930).




Cartas de um baralho gótico catalão utilizado para jogar hombre, impressas no século XVII, em Barcelona.

A história do auge e do declínio do hombre está ligada à evolução do número usual de jogadores que se reuniam para praticá-lo, processo que por sua vez relaciona-se intimamente à evolução dos costumes e hábitos sociais na Europa ocidental. Em sua forma mais divulgada, o hombre era um jogo para três pessoas, derivado de outro, homônimo, que depois desapareceu. Essa variante para três jogadores tornou-se conhecida como hombre renegado, ou simplesmente renegado, denominação que atesta, com suficiente eloqüência, que se tratava apenas de uma adaptação de um jogo imaginado para quatro pessoas, malvista e desprezada pelos jogadores do original. Contudo, ela teve um notável êxito -a ponto de que hoje só se sabe uma coisa a respeito do original, exatamente o fato de ser um jogo para quatro pessoas.
O renegado desenvolveu-se em princípios do século XVII na Espanha e espalhou-se rapidamente por toda a Europa, convertendo-se no jogo mais popular durante aquele século e o seguinte. O prestígio social que chegou a alcançar é comparável ao desfrutado atualmente pelo bridge.
Somente um outro jogo de cartas, a canastra, e em tempos bem mais recentes, conheceu uma expansão tão ampla e veloz, embora os tempos de existência dos dois não sejam comparáveis -dois séculos para o hombre, contra apenas algumas décadas para o canastra.
Com a passar dos anos, o hombre foi incorporando diversas modificações, que aumentaram sua complexidade e permitiram o surgimento de diversas variantes. A popularidade atingida por uma dessas versões, a quadrilha -nada a ver com o hombre original, senão pelo fato de que também é disputada por quatro jogadores -, é em grande parte responsável pelo desaparecimento do hombre, uma vez que ela se impôs às outras variantes com força e velocidade notáveis.
Por seu turno, e sem que se passasse muito tempo, a quadrilha cedeu lugar a outros jogos para quatro pessoas mais identificados com os usos sociais predominantes ou com particularidades de cada país. Foi o que ocorreu primeiramente em relação ao whist e ao boston e, mais tarde, ao bridge, todos eles nascidos a partir do extraordinário hombre.




Primeira página da obra The compleat gamester, de Richard Seymour, em edição de 1734.


O jogo espanhol hombre foi um dos primeiros que utilizaram o leilão, por meio do qual um dos jogadores (o declarante) procura cumprir um contrato, enquanto os outros buscam impedi-lo de fazer isso. Originalmente, o declarante era o "hombre" (homem), de onde teria derivado o nome do jogo.
Foi daí que evoluiu o leilão tal como é praticado hoje em jogos como o tresillo (ou voltarete, em Portugal), o tarô, o skat, o boston e o bridge. No bridge, em particular, ocorre uma curiosa situação: jogam duas duplas, cada qual procurando estabelecer o melhor contrato para si (jogo para quatro). Uma vez conseguido esse objetivo, um dos membros da dupla ganhadora "morre" e o outro -o declarante - joga contra a dupla contrária, que procura impedi-lo de cumprir o contrato (jogo para três).
Há muitas provas da popularidade do hombre em toda a Europa, como, por exemplo, o uso que ainda se continua fazendo, em lugares tão improváveis como a Jutlândia, de palavras espanholas como "matador" ou "solo" para designar determinadas cartas ou lances. Na Inglaterra, em particular, encontram-se outras duas demonstrações da grande disseminação daquele jogo.
A principal aparece na obra The compleat gamester, escrita por Richard Seymour no começo do século XVIII. Em sua parte inicial, o livro apresenta detalhadas instruções sobre os jogos mais praticados na corte real, entre os quais figura, de modo destacado, o hombre (lá chamado de "ombre"). A segunda demonstração do prestígio do hombre na Inglaterra é encontrada no poema The rape of the lock, de Alexander Pope (1688-1744), um dos mais importantes poetas satíricos britânicos.
Um conjunto de versos da obra descreve bem as emoções desse jogo, que era habitualmente praticado por homens e mulheres da corte da rainha Ana. A certa altura do poema, Belinda, a heroína da história, disputa uma partida com dois cavaleiros, na qual eles deverão "decidir seus destinos":


... emociona-se ao encontrar dois aventurosos cavaleiros que decidirão no ombre seus destinos.

Com grande vibração, Belinda anuncia que o naipe do trunfo serão as espadas:

... "Que as espadas sejam o trunfo!", disse ela, e trunfo as espadas foram.

O poema prossegue relatando o desenrolar da partida e sugere que os dois cavaleiros vão derrotar Belinda. Finalmente, num lance surpreendente, tudo termina bem:




Caixa de baralho escandinavo para o jogo hombre.

... o rei desapercebido, escondido na mão dela, e lamentando a dama dele, cativa, ele salta para a vingança com ansioso ímpeto e desaba como trovão sobre o ás prostrado.


Diante de tal resultado, Belinda não consegue ocultar sua emoção e, contrariando todas as normas de etiqueta da alta sociedade, começa a gritar, com grande alegria:


A exultante ninfa preenche com gritos o céu. As muralhas, as florestas e os grandes canais respondem.


Tanta emoção contrasta com a suposta austeridade que tradicionalmente se atribuía ao povo espanhol. Em 1865, o autor britânico Ed S. Taylor escreveu, em sua História dos Jogos de Cartas: "O jogo hombre tinha certamente um caráter sério e digno, de acordo com o temperamento da nação (espanhola)".
Com mais um exemplo da popularidade e da influência do hombre entre os ingleses -e, por decorrência, em todo o mundo de tradição anglo-saxônica -, vale lembrar que os naipes preto do baralho inglês são spades (espadas) e clubs (bastões), nomes que derivam das designações dos naipes do baralho espanhol (espadas e bastos) e que não têm nenhuma relação com os desenhos que aparecem nas respectivas cartas (setas e trevos).